Carrego um medo da morte paralisante que muitas vezes me impede de viver. Um tormento interno que virou a pauta principal de minhas sessões de terapia.
Ainda não sei com precisão quando nem o porquê, mas desenvolvi uma obsessão por tentar desviar de tudo quanto é variável capaz de me adoecer, ferir, levar-me a óbito.
Eu, que já tomei Coca-Cola com Marlboro de café da manhã, que já matei uma garrafa de uísque numa só noite, que já abati duas lasanhas congeladas na sequência… Passei a buscar uma alimentação extremamente saudável e restritiva que, embora seja promessa de mais anos de vida no futuro, deixa-me com a sensação de que estou deixando de viver momentos e gostosuras do presente. E não estou falando do glúten, faço questão de ressaltar: sou celíaco, não posso nem uma migalha dele e nunca mais poderei. Ponto.
Mas e o açúcar e o álcool? E as frituras? E as tantas delícias das quais abri mão e, nas raras vezes em que consumo, mastigo e engulo com culpa, engasgando com a sensação de que estou cometendo um suicídio, um crime hediondo contra meu corpo.
Para ter uma noção, mesmo gostando de um vinhozinho e duns bons drinks, eu não bebi mais do que oito taças nos últimos dois anos. E não foi por falta de vontade: deixei as garrafas intocadas, ocupando precioso espaço em meu pequeno armário, movido apenas pela angustiante impressão de que abri-las seria, automaticamente, encurtar minhas chances de sobreviver. “Não posso enfraquecer meu sistema imunológico”, era o tipo de coisa que ricocheteava em minha mente. “Não posso inflamar meu organismo!” E assim por diante.
O mesmo acontecia quando eu pensava em comer umas batatas fritas, um brigadeiro de colher, até mesmo uma tapioca (“O índice glicêmico é muito alto, melhor não!).
E se engana se pensa que esse tipo de postura aconteceu apenas no âmbito alimentar: passei a evitar situações também, especialmente aquelas que me pareciam mais arriscadas, capazes de me colocar em situações de perigo. Exemplo? Pegar estrada em dia de chuva, ir a lugares de madrugada, jiu-jitsu…
Aos poucos, sem sequer perceber, fui me enfiando numa bolha a fim de me sentir mais protegido. Sempre pensando em longevidade, em passar dos cem, em gabaritar nos meus próximos hemogramas. Comportamento que piorou muito com a chegada da pandemia, como já deve ter imaginado. Meti-me numa bolha na qual há mais segurança, é verdade, mas também se trata dum lugar onde a vida é insossa, morna e sem sal; um bunker péssimo para qualquer ser humano, especialmente a um escritor que precisa de fortes emoções para manter diálogos interessantes com o papel.
Sabe aquele papo clichê sobre a importância de encontrar o equilíbrio? Eu, que tanto o repeti em textos e frases-Trident-compartilháveis, deixei minha balança pender muito mais ao lado das coisas inofensivas, daquilo que não dá pano para manga de poema com potência.
Às vezes, fico me perguntando como é que isso foi acontecer com alguém como eu, que desejava ser um Vinicius de Moraes, rock star, esses portadores de turbilhões de intensidade e gana por experiências dos mais diversos e arriscados tipos. Como?! Como fui me tornar um abstêmio, um descendente de italianos e mineiros comedor de amaranto e batata-doce?
Aonde foi o Coiro do início do século, o Coiro que vivia, simplesmente, sem tentar calcular os riscos de cada passo?
Como afirmei no início deste desabafo, eu não tenho certeza da resposta. A vida não é matemática. Acredito, porém, que comecei a ter uma postura mais medrosa como consequência direta de ter ficado cara a cara com a fragilidade da vida: meu pai precisou colocar pontes de safena no coração, meu irmão teve um linfoma e eu fui diagnosticado com uma doença autoimune que me obrigou a reaprender o básico.
Além disso, de ter sentido o cheiro ardido da morte em hospitais e tê-la encontrado em pesquisas no Google, acredito que trocar a publicidade pela escrita também impactou no meu declínio de coragem. Explico: passei a trabalhar de casa, sozinho, refletindo e filosofando sobre este troço louco e sem bula chamado existência; acabei numa zona de conforto, sem a necessidade que a maioria tem de se expor àquilo que corta, amassa, fura, gripa, dá terçol; e nesta zona fui me enfiando cada vez mais, perdendo o ímpeto para o enfrentamento das situações difíceis fundamental para aumentarmos nossa capacidade de suportá-las, de lidar com a parte áspera inerente ao processo de existência. Compreende? Em vez de seguir calejando a alma, como bem fazia nos meus tempos de publicitário botequeiro (cuidado com leituras rápidas) que às vezes emendava saideiras com reuniões, acabei enfiado num apartamento tomando Omega3 e vitamina D, tomando cuidado com tudo, até demais, uma excessiva cautela que tomou-me, também, as chances de eu esbarrar com grandes prazeres impossíveis de serem alcançados por gente que não quer correr riscos.
Hoje, após muitas horas ruminando o tema, entendo que não faz sentido deixar de viver por causa do medo de morrer. Mais do que isso: abandonei meu desejo de viver mais de cem anos. Primeiro, porque pouco disso está de fato em minhas mãos. Segundo, e mais importante, porque… Bom… Porque viver tanto, sem de veras viver, não passa de sobrevivência, mediocridade repetida por paúra. Qual o sentido de abrir mão de tudo para, lá na frente, quem sabe, se pá, existir uns anos a mais?”
Outro dia fui ao cinema, depois de quase dois anos tremendo de medo do corona, suspeitando de cada espirro, de cada oscilação da minha temperatura. Foi um grande passo, acredite. Eu e um litrão de álcool gel. E, no final do filme, rolou uma citação do escritor Jack London que tornou-se meu mantra, frase que logo tatuarei: “A verdadeira função do homem é viver, não existir. Eu não gastarei meus dias a tentar prolongá-los. Usarei meu tempo.”
“É isso, porra!”, eu quase gritei.
Usarei meu tempo enquanto ainda tiver a chance.
E se engana se pensa que mudarei da água para o vinho, que sairei por aí no modo Charlie Sheen desenfreado com o capiroto no corpo. No entanto, graças à terapia e às reflexões que venho fazendo nos últimos meses, resolvi que vou viver. Cansei de apenas existir, manja? Com sabedoria, claro… Mas vou viver, porra! E mesmo que tudo isso acabe cedo, como às vezes acontece até mesmo com quem nunca colocou beck nem pinga na boca, terei a certeza de que aproveitei a jornada, que me joguei nas águas de profundidade nem sempre mensurável da vida.
Acho, até, que vou voltar a fumar. Camel ou cachimbo, ainda não decidi.
Brincadeira!
Mas amanhã vou assistir ao UFC tomando uma caipirinha. Limão e pinga, a clássica. E, entre uma luta e outra, parodiando o Poetinha que viveu em 66 anos o que muitos centenários nem sequer chegaram perto de provar, brindarei. Direi: “Que seja eterno enquanto eu durar, que eu siga lutando com toda minha intensidade mesmo ciente de que, um dia, a vida vai me nocautear.”