No instante em que interromperam a reunião do conselho para chamá-la, ela sacou que havia algo de estranho rolando. Alguma merda. E começou a sentir dificuldade para inalar o oxigênio assim que pediu licença e deixou a sala infestada de engravatados comedores de putas e picanha na chapa, antes mesmo de chegar ao telefone que já a esperava fora do gancho.
“Tânia, seu pai foi atropelado e não resistiu”, a tia comunicou na lata, sem gatos caindo do telhado ou “Preciso que se sente, tenho algo ruim a dizer”. A irmã da mãe não disse nem “Alô”. E a Tânia, após a marretada, emudeceu-se como ficava nas apresentações que costumava ser obrigada a fazer na escola. E sentiu as pernas cimentando, aderindo ao tapete exageradamente aspirado da multinacional alemã – algo semelhante à impotência física que costuma sentir em pesadelos, quando o ser de face turva e longos braços está se aproximando. Ficou num estado de total catatonia por cerca de cinco minutos, como se tivesse fumado um baseado recheado com aquelas maconhas novas e extremamente potentes, criadas em laboratório, que nocauteiam até mesmo os maconheiros mais profissionais e com bastante THC no currículo. E então caiu no chão e no choro, simultaneamente. Não ajoelhou como vemos nos filmes. Não! Apenas deixou o corpo despencar para trás, como se fosse uma mergulhadora se atirando num mar negro. Foi da Faria Lima ao Oswaldo Cruz de Samu.
Horas depois, sentindo-se amortecida por tudo a fizeram engolir, pela boca trêmula da mãe ficou sabendo: o pai havia sido assassinado no acostamento da Fernão Dias, chutado por um caminhão guiado por um gordo com a cabeça inundada de rebite, pó, Pitu e Paracetamol… “A bicicleta foi parar do outro lado da pista”.
Nos meses seguintes fez terapia e tomou uma batelada de calmantes e todo tipo de “balinha” para ansiedade, depressão e bullying feito pela vida. Comprou até uma caixinha plástica para guardar compridos com seis compartimentos, coisa que antes achava bizarra, troço de velhote hipocondríaco. Mas nada a ajudou tanto quanto as aulas de yoga que iniciou por causa de uma amiga com cheiro de incenso e que, de acordo com o que dizem nos botecos de Sampa, faz o cabra gozar só com a força da boceta, apertando e soltando o cacete, até o último urro. Dizem, até, que a pressão da xoxota dela serve de anticoncepcional, já que, quando quer, espreme o pau de um jeito que nem o espermatozoide mais destemido consegue vazar. Nem uma gota. Apenas um grito seco, de acordo com o que comentam. Enfim.
“Yoga? Eu já tomo todo tipo de tarja preta, Fê!”
“Confia em mim, amiga! Vai fazer tudo ficar mais leve.”
E a Tânia, depois de muito relutar, aceitou fazer o teste. Aceitou porque se sentia vazia a ponto de achar que não tinha mais nada a perder. Sentia-se um corpo oco.
Três meses após o início das aulas já respirava, sentava e pensava diferente. Voltou a se masturbar e a usar batom vermelho. Reassumiu o controle que havia perdido junto com o pai. Começou a sentir vontade de viajar à Índia, admirar monge cabeça de ovo que não abre o bico por nada, comer rango agridoce com páprica, doar os sapatos de sola vermelha, fazer campanha do agasalho, curtir passeio cheio de gente que curte compartilhar de tudo… Tornou-se, até, uma pessoa melhor do que era antes do pai virar carne moída. Ou quase: na semana passada, após descobrir que o assassino do pai havia sido encontrado morto num posto de estrada, ela comemorou. Abriu uma garrafa de champanhe, colocou Gimme Danger (do Iggy Pop) para tocar ad infinitum e se imaginou na pele da puta que confessou ter matado o caminheiro por causa de umas pedras de crack. Imaginou-se cortando o pau do gordo com uma faca cega e o fazendo engolir, de uma só vez, como as “mulas” colombianas fazem com camisinhas cheias de cocaína. E não parou aí: na mente conseguiu ver, como se estivesse vivendo a cena, o porco peludo engasgando com o próprio pau e implorando por água, e sendo obrigado a fazer deepthroat para a bomba de gasolina, e sendo preenchido com mais litros do que um Celta aceita. Imaginou o caminhoneiro estrebuchando sem ninguém para ajudá-lo. E sorriu aliviada, como se uma farpa há tempos cravada em sua alma tivesse sido removida, finalmente.
No dia seguinte, junto com o nascer do sol, conseguiu fazer uma posição de yoga conhecida como vaga-lume pela primeira vez. Um transatlântico enferrujado e cheio de crateras havia saído de dentro dela.