Você tem um amigo de comer bolo?

“A expectativa é a mãe das frustrações”, ouvi num botequinho em que os copos cheiravam a ovo e garçons tinham orelhas peludas, e desde então venho percebendo que não há verdade maior nem mais aplicável aos muitos campos da vida.

Aplica-se, inclusive, às relação humanas, das com direito à trepada às só com beijo na bochecha e olhe lá. Afinal, em grande parte das vezes que nos frustramos com um BFF ou pau amigo, a culpa é majoritariamente nossa, reflexo direto de nossa incapacidade de perceber que a melhor forma de evitar fronhas molhadas e decepções atômicas é abrir um caderno e dedicar algum tempo classificando toda e qualquer pessoa com quem temos contato.

Mais ou menos assim, ó:

Fer: a amiga de beber cerveja e perder a linha no Villa Country

Ótima para baladas, churrascos e conversas que não vão muito além de BBB e casamentos entre celebridades. Não está nem aí para minha depressão, talvez até ache frescura, e, muito provavelmente, inventaria uma desculpa – não descarto abdução – se eu precisasse de dinheiro ou fosse presa de madrugada.

Roberval: rola friendly inimigo do Pasquale

Atendente da Cobasi pauzudo e empenhado. Cai bem em dias de verão nos quais o vibrador não está dando conta. Fala “menas”, “top” e outras coisas que ativam meus preconceitos linguísticos mais obscuros. Às vezes, me come feito britadeira, admirando as próprias nádegas cultivadas à base de muito agachamento com sacos de ração e areia de gato, mas, no geral, tem um bom desempenho, não é cem por cento egoísta como a maioria, e funciona melhor do que Maracugina em dias de insônia. Perfeito para motéis, escadas de incêndio, matos sem carrapato; não orna com passeio dominical no shopping nem com eventos em que sobra tempo para conversa e falta oportunidade de agir instintivamente, feito os bichos que somos quando não temos que fingir civilidade e essas merdas.

Nataline: parceira pra toda obra; de idas à lavandeira a cheesecakes devorados como desculpa para horas e mais horas de conexão verbal sincera

Com ela eu posso ser eu mesma, contar das crises de pânico que vêm do nada, do pum que virou cocô na calcinha, das minhas vitórias que outras mal ouvem, como se não passasse de exibicionismo da minha parte. Aceita meus convites de bate-pronto, nem aí para o lugar e para quem mais estará lá. Diz “sim” a padarias, idas ao mercado e ao posto de vacinação. Diz “sim” pela minha cia. E melhor: ela parece interessada no que eu falo, pergunta “e depois, amiga, o que ele disse?”, “como foi a entrevista?”, “você está feliz assim?”, “tem conseguido ficar sem carboidrato?”. Pergunta, ouve, sugere, abraça, conforta, olha nos olhos e não ao celular. Herdará todos os meus vestidos da Antix quando eu bater as botas. Ah… E minhas botas também.

Verônica: relação já sem sintonia

Fomos melhores amigas na época da faculdade, inseparáveis em trabalhos e bares. Hoje, porém, estamos em dials diferentes, dessintonizadas, e por mais doloroso que isso possa parecer por tudo que já vivemos e aprontamos juntas, preciso aceitar que não é mais a mesma coisa, que o desenrolar da vida afastou nossos caminhos, que ela só quer encher a cara e fazer churrasco enquanto eu ando querendo viajar e correr no Ibirapuera na primeira hora da manhã. Temos muita consideração uma pela outra, por tudo que já vivemos, pelos tantos aniversários que já comemoramos juntas, mas temos tantas divergências – políticas, inclusive – que hoje não vejo mais sentido em encontros além dos superficiais, e, quando acontecem, geralmente nos moldes estabelecidos por ela, ela sempre acaba bêbada aparentando estar incomodada com a pessoa que me tornei, a pessoa que não bebe mais até cair nem acha graça nas piadinhas homofóbicas e machistas que ela insiste em defender usando termos como “mimimi” e afirmações como “hoje o mundo está chato”

Compreende a importância do exercício acima?

É óbvio que não precisa ser num caderno. Nem com os adjetivos e frases que usei, principalmente, para lhe tirar alguns risos e reflexões profundas. Mas precisa ser feito. Suas relações precisam ser classificadas a fim de evitar que sejam fontes do seu sofrimento.

Ou ainda não percebe o quão salvador pode ser aceitar que, certas pessoas, não têm mais a nos oferecer do que a companhia para uma cerveja regada a papos de elevador?

Pois perceba e identifique em quem vale a pena investir suas energias e em quem não se pode esperar mais do que um “parabéns” anual na timeline do Facebook. E, se tiver a sorte de possuir o raro tipo de relacionamento capaz de florescer num quarto em branco sem TV nem wi-fi, não seja trouxa e nutro-o com seus melhores adubos, principalmente com ouvidos atentos, presença plena e sinceridade.

Já no que diz respeito aos seus colegas, aqueles com quem só se toma cerveja e nada muito além, a não ser que estejam impedindo seu voo ou agindo de maneira capaz de atrasar sua vida, não há razão para descartá-los: só não perca tempo investindo neles muito mais energia do que eles estão dispostos a lhe dar em troca. Troca, isso mesmo! Reciprocidade. Ou acha que existem relações que sobrevivem sem troca? Talvez a de mãe e filho. Talvez. Mas, na maioria dos casos, quando uma das partes entrega-se muito menos do que a outra, pode ter certeza de que a coisa tende a ficar morna, sem sal.

O mesmo vale para relações amorosas, claro que vale! Ou acha que faz algum sentido passar boa parte do seu tempo se esforçando para alegrar a vida de um cara que só tem olhos para futebol, churrasco e, nas raras vezes em que sai para jantar com você, vai com a camisa do Timão levemente suada?

Não, não faz sentido. E mesmo que ele um dia tenha feito muito por você, tenha lhe roubado o coração com cartas e mais cartas de amor, é preciso atentar-se ao momento, àquilo que ele se tornou. Talvez seja a hora de reclassificá-lo no seu caderno de relações, compreende? Talvez até riscá-lo. Pois, por mais triste que isso possa parecer, é comum que personagens com papéis de grande destaque em nossa história acabem se tornando coadjuvantes que mantemos por perto por mero pavor do recomeço e aquela pitadona de comodismo que vive nos mantendo em zonas de conforto que só nos ferram.

Por mais engraçado e lúdica que essa brincadeira de caderninho possa parecer, ela contém uma essência que funciona, ajudando-nos a compreender em quem devemos investir nosso estoque de carinho e de quem não devemos esperar quase nada.

E antes que me pergunte se eu sou tipo aqueles influencers que recomendam coisas que nem sequer pensam em fazer, respondo: já classifiquei meus amigos e vivo a reclassificá-los, já que nada permanece estático perante o tempo. No meu quinto livro, inclusive, o Neste Livro o Escritor Tira a Roupa, você encontrará um texto que fiz em homenagem a um “amigo de comer bolo” que faleceu muito novo, com quem eu, antes da doença celíaca, ia à padaria para comer bolo indiano. A fatia acabava e a gente passava horas batendo papo. A bomba açucarada não passava de um delicioso pretexto para um laço muito mais forte que estávamos firmando. Saca?

Se saca mesmo, e captou a mensagem deste texto, feche logo esta janela, abra o caderno, dê nome aos bois e, em seguida, faça uma ligação ao equivalente no seu rol de amigos ao meu amigo de comer bolo – ou à Nataline deste texto, personagem inspiradíssima numa grande amiga da minha namorada, a primeira pessoa com quem ela se encontrará assim que for vacinada.

 

 

 

 

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Ricardo Coiro

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