Um vinho comprado na conveniência do posto da esquina, Lou Reed saindo do celular sobre o balcão da cozinha americana e duas pessoas em processo de cicatrização, pisando em ovos e brasa, desejando a chama, o mergulho, mas temendo a dor dos planos partidos que neles ainda ecoa, que vira e mexa volta a latejar por causa de gatilhos, músicas, domingos, perguntas em jantares de família, tudo.
“Eu não imaginava que fosse acontecer tão rápido”, ela solta depois do primeiro gole na terceira taça, como se estivesse com essa declaração entalada desde que se conheçam num boteco perto do trabalho dele. “Até ontem eu só pensava em carreira, não queria nem saber de relaci-”
“Nem eu”, ele se adianta. “Mas aí você resolveu escolher o mesmo bar que eu, né? O acaso tem dessas.”
“Ou destino?”, ela solta com a sensação de que algo maior os juntou.
Estão vidrados um no outro.
“O importante é que a gente tá aqui”, ele afirma enquanto se aproxima devagar. “O importante é que a gente tá perto o suficiente para…” Já fechando os olhos, roçando os lábios nos dela, desarmando-a.
“É isso que importa”, ela fala baixinho. Lábios à queima-roupa.
Apesar do medo, da sensação de que estão fazendo algo muito arriscado, tudo se encaixa bem. Até demais. Molotov de peles. Tanto que, apesar de ainda estarem em carne-viva, de coração esfolado, arrastando-se pelas paredes dirigem-se à sala e não demoram a estacionar sobre o tapete.
“É muito cedo”, ela ainda pensa. Mas o corpo pede para descobrir a continuação daqueles toques, dos beijos no pescoço e sussurros mais atrevidos na orelha. O corpo pede e ela cede. Take a walk on the wild side…
Depois de explodirem, enquanto o tum-tum dela ainda luta para retomar o passo bossa-nova, ele acende um cigarro e faz silêncio. Encara a cidade que ainda pulsa, a noite que ele tanto ama apesar de destrui-lo. Ela acha aquilo lindo, tão poético quanto as coisas que ele escreve em guardanapos e num blog que pouca gente ainda lê. Principalmente a bunda dele, carnuda, com muito mais sustância do bundica vegana do ex.
“É… A vida pode ser boa”, ela constata mente adentro. Hoje, pelo menos.”
Pede um cigarro sem se reconhecer, num impulso. “Ou é isso que sou de verdade?” Fuma depois de anos, traga fundo. Sente-se satisfeita pelos minutos do futuro que está trocando pela delícia de viver esta única noite de libertação, reencontro, mordidas e arranhões que ficarão para sempre neles, qualquer que seja a continuação. “É, a vida pode ser boa”, dessa vez em voz alta.
Ainda há pavor por dentro. Claro que existe. Medo semelhante àquele que se apossa da gente quando nosso cachorro morre e nada no mundo parece capaz de nos convencer a adotar outro.
Mas a sensação de estar respirando novamente é maior, eclipsa a emoção que a vinha paralisando, prendendo-a numa hipótese criada pela parte dela apegada demais à zona de conforto.
Ele não diz nada, comunica-se melhor escrevendo. Acende mais um enquanto o Lou canta. Divide-se em vontade de devorá-la – e por ela ser devorado – de novo e a urgência de colocar tudo num conto desses que deixa os leitores pensando:
“Existe de algo de verdadeiro no que ele escreve ou tudo não passa de ficção?”