O poder de uma surpresa

Era uma sexta-feira comum: nem treze nem data comercial.

Esperei, pacientemente, ela secar cada fio de cabelo e se vestir para mais um expediente monótono de trabalho. Fingi que dormia como uma pedra; acalmei a respiração ansiosa e forcei as pálpebras com força, para mantê-las bem cerradas. Precisava manter o disfarce e não queria, por nada neste mundo, estragar a surpresa com muita antecedência planejada.

Assim que ouvi a porta de saída sendo fechada, corri para arrumar a mala dela. Ela ainda não sabia, mas na noite que estava por vir, diferente de todas as últimas, iríamos dormir no Chile, em Santiago.

Confesso que fiquei confuso diante do armário transbordante, dos tantos vestidos parecidos e dos incontáveis pares de sapato, porém, com auxílio da memória de elefante que tenho, consegui me lembrar de algumas das infinitas combinações que já a havia visto trajar saltitante. Deixando a modéstia um pouco de lado, acho que montei uns looks (não é assim que as blogueiras de moda falam?) bem legais. Detalhe: só levei as calcinhas de pouco tecido, afinal, queria que os próximos dias fossem pra lá especiais e cheios de… Você sabe! Além de roupas, na mala dela coloquei também algumas poesias inéditas que tinha feito para reinventar sorrisos, balas do tipo que ela teima em acabar ainda no trailer do filme e uma máquina fotográfica analógica, que ela vinha paquerando há tempos. E não parei por aí: junto com os itens de banho, coloquei um óleo de massagem, e nele colei uma etiqueta com a seguinte identificação: vale-massagem.

Por volta das 14 horas, enviei uma mensagem dizendo que a buscaria no trabalho, para jantarmos fora. Ela me perguntou se comemoraríamos algo e eu, em tom falsamente desanimado, apenas disse que conheceríamos o recém-inaugurado restaurante de um amigo. O tempo parou naquela tarde. Tentei ler algo, mas não tinha concentração suficiente nem para um mísero gibi. Fiz força para assistir à TV, mas as únicas imagens que conseguiam deter minha atenção eram aquelas que eu mesmo roteirizava, pensando nos momentos que estávamos prestes a desfrutar ao som do nosso “portunhol”. Tentei dormir, mas o coração batia muito além do peito, no quarto todo. Depois de horas vendo o ponteiro engatinhar, enfim, saí de casa para buscá-la. Estava vestindo aquela jaqueta de couro que a deixa com tesão indisfarçável e exalando o perfume que usei no inesquecível dia em que nos conhecemos, num boteco que insistia em rodar.

Cheguei rápido e, sem hesitar, parei em fila dupla e dei uma dedada no pisca-alerta. Cá entre nós, sentia-me imune à dor das multas e estava extremamente ansioso para descobrir a cara que ela faria ao sacar meu plano mirabolante.

Ela entrou no carro, tocou meus lábios e logo reclamou do chefe carrasco. Eu disse que todas as coisas se ajeitariam, coloquei um Jorge Ben que sempre a faz dançar e, com a mão sobre a coxa dela, consegui fazê-la mudar de assunto, pensar em coisas melhores.

Não sei se por desatenção ou completa falta de noção geográfica, mas ela não percebeu que nos aproximávamos do aeroporto. Eu fiz de tudo para distraí-la: mostrei fotos no Instagram, pedi que procurasse um controle no porta-luvas e perguntei, fingindo preocupação com a fiscalização, a data de validade do extintor de incêndio do carro. Só quando já havia estacionado o carro dentro do aeroporto, ela me perguntou o porquê de estarmos ali. Eu respondi que o restaurante novo do Fernando ficava lá dentro, apenas. E ela entrou em Congonhas como se estivesse entrando na praça de alimentação de um shopping qualquer, sem fazer expressão de desconfiança ou perguntas complexas. Seguimos em direção à área em que ficam os restaurantes e, assim que pisamos lá, com a mão na testa mandei: “Merda! Merda! Merda! A inauguração será só amanhã, acabei de me lembrar da mudança que rolou na semana passada por causa de um alvará que atrasou. Merda!”. Pedi desculpas, muitas delas. Fiz cara de “sou burro pra caralho”. Ela não reclamou. Pelo contrário: tentando me fazer rir, afirmou que esse tipo de coisa acontece nas melhores famílias. Então, sugeri que entupíssemos algumas artérias no McDonald´s, e ela topou, na lata. Decorei o pedido dela, pedi para que esperasse sentada e fui buscar os lanches. Sorri para a simpática atendente e a convenci a me dar uma caixa de sanduíche extra, para enfiar dentro dela a passagem que dizia: São Paulo—Santiago.

Coloquei a bandeja com os lanches pertinho dela e quase morri de ansiedade quando percebi que ela comeria os nuggets primeiro; mas esperei com bravura — e roendo as unhas — ela mergulhar cada pedaço de frango no barbecue. Assim que segurou a caixa leve, fez cara de “que porra é essa?” (entortou a sobrancelha e enrugou a testa); e após abri-la, fez um minuto de silêncio — o minuto mais longo que vivi até aqui. Ela então me fitou, nas retinas, e eu sorri com cara de moleque arteiro, do tipo que ama uma travessura bastante arquitetada. Ela olhou novamente para o interior da caixa e, com uma fina película de água já visível nos olhos, disse que me amava. E, carinhosamente, me chamou de “besta”.

A viagem foi linda, de verdade, mas nem o céu estupidamente azul de Santiago conseguiu superar a magnitude do sorriso que ela me deu quando abriu a caixa. Nenhum passeio foi tão memorável quanto a cara que ela fez quando esbarrou com a surpresa. Juro! Nem mesmo a poesia nativa do Neruda foi capaz de me emocionar tanto quanto as expressões dela ao desfazer a mala e ao descobrir que meu interesse maior não era conhecer um novo território. O que eu realmente queria? Queria redescobrir cada curva do corpo dela.

Santiago não passou de uma desculpa — uma linda desculpa, por sinal — para vê-la feliz.

 

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Ricardo Coiro

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