Há cerca de três anos meu pai colocou umas pontes no coração entupido. Não foi um período cheio de belezuras, acredite. Porém, no hospital em que ele ficou internado por uma semana eu conheci um sentimento bonitão: o amor de Juvenal. Você já ouviu falar dele? Não? Então, por favor, preste muita atenção no texto que escrevi na época:
“Apesar da barba despenteada e das roupas pretas que insisto em trajar, de tanto que têm me servido, as garçonetes do café deste hospital já começaram a me chamar de ‘doutor’. Até pensei em dizer que não trabalho aqui, que odeio o cheiro do éter e que sou somente um escritor que não gosta de sapatos – muito menos dos brancos. Mas sempre que elas me perguntam ‘Vai mais um café curto, doutor?’, eu apenas aceito, temo que me mostrem a garganta inflamada e continuo a observar as almas descabeladas e cheias de olheiras que, como eu, parecem condenadas a vagar por este labirinto de muros brancos e sorrisos rarefeitos – ou feitos à força, apenas para dar força àqueles que temem o pior.
Onde estou agora (perto da UTI) parece não existir razões para a vaidade. A moça que, lá fora, nem à padaria costuma ir sem pintar os lábios e emoldurar os olhos, nesta sala abarrotada de famintos por notícias se esquece do cabelo que desde anteontem não avista um pente. Está com a boca rachada pelo frio e, nem por isso, passa batom ou protetor labial.
Mas aqui, acredite se quiser, também é um ótimo lugar para observar o amor – do tipo mais sincero que eu conheço. Digo isso porque ontem eu me senti muito privilegiado por ter conhecido o seu Juvenal, o homem que não esconde o belíssimo sentimento que nutre pela dona Maria. Cidadão que, há dois dias, enquanto espera por informações a respeito da mulher com quem se casou em 1975, vive a dar as mais nítidas e irrefutáveis demonstrações de amor.
Eu o ouvi afirmar à enfermeira que não sairá daqui sem a esposa em hipótese alguma. E, pelo pouco que conheço do seu Juvenal e graças à película de água que se formou nos olhos dele enquanto fazia tal afirmação, sei que não blefou.
‘Ela vai sair dessa e você vai conhecê-la, Ricardo!’, ele me disse. E eu respondi: ‘Com certeza conhecerei a sua patroa!’. Respondi firme, como se realmente pudesse prever as variáveis mais incontroláveis da vida. E torci, com todas as minhas forças, para que a vida me desse a chance de contar à Maria coisas sobre o amor do Juvenal.
O Juvenal é foda (no mais valente e guerreiro sentido que a palavra ‘foda’ pode assumir)! Ontem, sabendo do estado crítico em que dona Maria se encontrava, sentado sobre uma desconfortável cadeira de hospital e exposto ao vento congelante do inverno, ele completou mais de 48 horas sem dormir, comer e tomar banho. Qual outro sentimento faria com que alguém arrumasse forças para suportar tais condições desumanas e torturantes? Desconheço.
Só por amor somos capazes de abrir os olhos quando as nossas pálpebras parecem pesar mais de mil toneladas. Só por amor conseguimos nos manter eretos quando o mundo parece determinado a nos curvar. Só por amor é possível acreditar, cegamente, naquilo que todos afirmam ser improvável – e até impossível.
E sabe o mais bonito? Em nenhum momento eu ouvi o Juvenal reclamar, de nada. Nem do frio. Nem da vida. Nem do tempo que parou enquanto a dona Maria estava longe dele. Mas ouvi, com muita atenção, uma frase que o Juvenal falou acerca daquilo que estava fazendo para a dona Maria: “Eu só estou retribuindo um pouco do muito que ela já me fez!”. E achei que valia um texto – este texto -, pois não é sempre que vejo um amor durar 39 anos e que torço, com tanta força, para que a morte não separe o que a vida graciosamente juntou.
Observação: a dona Maria já saiu da UTI, e eu, como havia prometido ao Juvenal, fiz questão de conhecê-la e de fazê-la ciente do quanto está em boas mãos, mesmo quando o Juvenal não pode estar (tão) perto.”
Hoje, infelizmente, não sei se a dona Maria está bem. E faz um tempão que não recebo notícias do seu Juvenal. A única coisa que sei é: o amor de Juvenal me pareceu imortal. E amores assim merecem ser eternizados.