Flexibilizar ou seguir na bolha?

Negacionista, eu? Sou o oposto disso, pode acreditar.

Duvido, inclusive, que você conheça alguém que tenha feito uma quarentena tão rígida quanto a minha. Aposto um sushi. Um pote de doce de leite Viçosa.

Graças ao meu trabalho, que sempre pôde ser desenrolado de casa, e aos muitos privilégios que reconheço ter, pude passar os últimos longos meses (séculos?) saindo da bolha somente ao essencial e olhe lá. Até as compras do supermercado eu fiz exclusivamente por app. Logo eu, que sempre amei escolher abobrinha e abrir caixa de ovo para verificar a integridade deles. Logo eu…

Não encontrei amigos nem meu pai. Além da minha namorada, que mora comigo e conseguiu trabalhar de casa também, só vi meus avós e mãe, isolados numa área rural do Sul de Minas onde havia mais aranha armadeira do que corona. Encontrei-os, mas não beijei. Não abracei. Nem sequer os toquei. Escancarava todas as janelas quando almoçávamos juntos, segurava a respiração se alguém espirrava. E assim, separado de tudo que um dia me foi abundante, longe dos simples prazeres que nunca cogitei perder, segui até… Bom… Até que resolvi iniciar o processo de retomada. Já tô vacinado, afinal. E tudo indica que a pandemia está atingindo um patamar mais aceitável – se é que isso pode ser dito num país em que quase 600.000 perderam a vida, né?

A verdade que andava ruminando faz tempo é: minha vida precisa voltar a ser um pouco mais parecida com o que era, pelo bem da minha saúde mental; para que eu não perca, completamente, a capacidade de interagir com outros seres humanos e acabe miando e ronronando feito os gatos que seguiram me amando mesmo quando, sem querer, borrifei álcool neles.

Preciso desentocar, acima de tudo, porque não há mais como adiar o básico, o mínimo necessário para me sentir novamente humano e funcional. Preciso e estou ciente dos riscos, nem precisa me falar. Ciente e, constantemente, calculando-os, analisando onde piso, toco, passo, respiro…

Na semana retrasada, por exemplo, retomei as caminhadas no parque. De máscara e tal. Fazendo tudo que está ao meu alcance para me sentir mais protegido. Mas voltei e pretendo, um dia, correr 5 quilômetros. Já encontrei, também, com um amigo na área externa de um bar no qual há um bom distanciamento entre as mesas. Foi estranho mostrar meu sorriso em público, confesso, mas desnudei meu rosto, bebi duas águas com gás e papeei. Voltei para casa feliz por ter dado este que, para mim, foi um enorme passo. E depois de 4 dias fiz um PCR. Mentira.

Não pretendo ir a baladas nem a baile funks. Nem quando tudo voltar a ser como antes, se é que um dia voltará. Não pretendo porque sigo meu velho normal, ou seja, sendo um adulto normal de alma velha e ranzinza. Foda-se. O que importa aqui é: comecei a flexibilizar mais. Porque, afinal de contas, se tiver que viver mais alguns anos como vivi (sobrevivi?) meus últimos meses, sem sequer sair de casa, não escolhendo nem mesmo minhas berinjelas e chuchus, sem aquele olho no olho com meus camaradas… Então prefiro nem viver, sério.

Chocante, né? Pode até ser. Mas refleti muito e concluí que chegou o momento de correr mais riscos para não correr o risco de jogar as melhores oportunidades da existência no lixo, compreende?

Não aguento mais ver a vida passando em telinhas. Um recorte distorcido da vida, digo.

Seguirei respeitando as medidas de distanciamento e tudo mais. Com álcool gel sempre à mão, PFF2 em ambientes fechados e o caralho, mas, vou voltar a viver, a me expor, a sair por aí para admirar o tanto que eu só andava vendo de maneira maquiada por filtros em fotos milimetricamente calculadas para vender perfeições que não existem. Vou sair por aí ciente de que me contaminar é uma possibilidade, assim como ser atropelado, tomar bala perdida, ser picado por jararacuçu ou Aedes aegypti.

O que mais vou esperar agora? A terceira dose? A quarta? A sexta temperada de Peaky Blinders? O divórcio dos que esperaram 90 dias para casa? A volta da Banheira do Gugu sem o Gugu que, coitado, bateu as botas de maneira assustadoramente boba reforçando a fragilidade da vida? Vou esperar o tempo passar socado em casa feito o Kaspar Hauser?

Não escrevo para incentivar ninguém a sair lambendo calçadas e botões de elevador. Nem acho possível que voltemos do dia pra noite à vida beijoqueira que um dia tivemos. Porém, se você é um dos raros que ainda estão dentro de casa desaprendendo a conversar sem o auxílio de áudios e emoticons, sugiro que coloque a situação toda na balança e faça uma análise, também, dos potenciais prejuízos de não viver nada, nem um mísero encontro ao ar livre com uma pessoa querida. Especialmente se está vacinado, é jovem e não tem comorbidade. Entende meu ponto?

Reforço, sem medo de parecer repetitivo, para evitar ser interpretado de maneira errada, que ainda precisamos tomar certos cuidados e precauções, que ainda há a necessidade de evitar certas coisas. Mas nem tudo, não é mesmo?

Porque passar o dia todo escondido sob o edredom mamando leite condensado e tremendo de medo da realidade também lhe fará muito mal, acredite. Especialmente se não toma nada de sol e é sedentário.

Chegou a hora de dar tchau à bola Wilson e ser um pouco menos náufrago sem perder a consciência da realidade nem negá-la por causa de fake news de WhatsApp, parceiro. Esse é meu ponto. E, se é do tipo que treme só de pensar em deixar os confins do lar que nem por questões profissionais precisou deixar, sugiro que comece de leve, descendo para bater um papo de longe com o porteiro, com a vovozinha que todo dia varre a calçada. Daí, depois que parar de gaguejar e reaprender o beabá do blábláblá, vá até a padaria da esquina e compre uns chicletes, depois até o super, então, caso se sinta mais seguro, marque de caminhar com um amigo e por aí vai. Saca?

Só peço um favor: nada de máscara ou sunga de crochê.

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Ricardo Coiro

Ricardo Coiro

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