Deixei a porta aberta a você

Ontem eu ouvi uma das tantas músicas que me lembram da gente e foi inevitável não rebobinar nosso filme à primeira vez em que compartilhamos momentos bonitos em sua varanda. Deitado na cama, de barriga para cima e braços cruzados sobre ela, permiti-me cerrar as pálpebras e recordar, apenas: revisitei nossos lábios se explorando sem pressa nem pudores; sua respiração à queima-roupa, meus dedos perdendo-se entre seus cachos, sua mirada tímida, às vezes até escorregadia, fugindo da minha fome ocular, do meu desejo de não perder nenhuma cena nem expressão. Tudo muito azul, pacífico, com exceção da bandeira do Belchior na parede, vermelha e branca, estampada com a seguinte frase:

“Meu coração selvagem tem essa pressa de viver.”

Um do outro, ainda sabíamos bem pouco até então: apenas o que havíamos contado em breves conversas de WhatsApp e áudios, o que nossas tagarelices já haviam deixado escapulir. No final daquela noite, porém, voltando à minha casa com seus aromas e fluídos ainda em mim, ficou claro que eu precisava conhecê-la melhor, saber bem mais de seus gostos e gatos, amigos e (até) ex-amores, suas frutas preferidas e vontades antes silenciadas, seu jeito de dormir e acordar, os desejos e planos que para outros nem sequer cogitou contar.

Não me pergunte como, mas não precisamos nos misturar muito para que eu tivesse a certeza de que nosso match era real, conexão de pele, química forte, sintonia potente, tudo que eu já até tinha ouvido falar, mas nunca havia vivido com tamanha nitidez e graça. Eu só soube. Senti. Bateu. BOOM! E foi ficando mais forte nos encontros seguintes, na primeira vez que dormiu em casa e passou café para nós bem cedinho, quando fomos do bar à sua casa ouvindo — em looping — a música que tanto nos arrepia os pelinhos da alma, no dia em que saímos do meu restaurante preferido alegrinhos de vinho branco e agradecendo pela plenitude daquele recorte na existência, quando aceitamos nosso lado preguiçoso e trocamos um aniversário por risoto, brigadeiro e Irmãos do Jorel na TV…  Foi ficando tão forte, tão aprazível e singular, que me soou inevitável lhe dar a chave de um dos meus cômodos mais importantes, lugar ao qual pouquíssima gente teve acesso, acredite.

Dei-lhe a chave sem pensar duas vezes, é verdade, mas, em segundo algum, fiz com a intenção de obrigá-la a ficar. Sei o quanto suas asas lhe importam, afinal. E pouca gente lhe deseja voando tão alto como eu, pode apostar. Pelo contrário: apenas abri a porta do meu salão principal e, de todas as formas que consegui, declarei: aqui, em mim, você é mais do que bem-vinda quando quiser se abrigar, quando achar que tudo não vai dar pé ou quando, simplesmente, estiver a fim de uma troca de afetos e olhares contundente e verdadeira, dessas que andam beirando a extinção neste mundo de gente cada dia mais poça.

Não foi uma exigência de compromisso. Não foi um pedido de namoro. Não foi um anel de noivado. Tratou-se, apenas, dum atestado genuíno de que você, do exato jeitinho que é, já havia conquistado um território nobre por aqui, um espaço especial reservado àquilo que considero mais valioso, onde só tocam minhas baladas mais honestas, minhas batidas cardíacas mais robustas; onde com carinho guardo todas as conchinhas da minha infância, pedregulhos preciosos apanhados pela vida adulta, memórias duras que sigo colorindo com giz de cera e outras preciosidades e cicatrizes que ainda não mostrei a quase ninguém, mas que, a você, farei questão de desempoeirar, lustrar, emoldurar…. Se um dia ainda quiser ver. Se, porventura, achar que alguns de seus tantos enfeites e cacarecos — os que não lhe farão falta — podem dar ainda mais brilho a meu espaço.

A porta segue escancarada a você. É isso que precisa saber. E quando você se reencontrar em sua própria planta baixa, quando sair de seus labirintos interiores, quando achar que lhe fará bem se perder um pouquinho por aqui: não precisa tocar campainha nem me pedir licença. No máximo um “ô de casa”, três palminhas, só para eu ter tempo de me perfumar, colocar minha melhor camisa, meus anéis e pulseiras, tudo que um dia suspeito tê-la encantado. E mesmo que resolva me pegar desprevenido, já quase engasgado com a hipótese de você nunca mais querer reentrar, aspirando tudo só para não afogar de vez a esperança num último verso dessa nossa dança, ainda sim me flagrará com meu mais indisfarçável sorriso, com disposição de sobra para massagens e cafunés, conversas infinitas sob efeito de mil cafés, sedento para lhe mostrar, uma a uma, as tantas rosas que venho roubando dos jardins da vida só para, de alguma forma, sentir que não estou perdendo o contato com você. Que além dos livros e finos fios de cabelo, ainda sobrou algo de mim por aí também.

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Ricardo Coiro

Ricardo Coiro

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