Comer, beber e amar

Setembro de 2022

Tô no mediterrâneo. Sul da Itália. Perto do dedo da “bota“. Sicília. Eu e um marzão azul como a caixinha da Tiffany. Turquesão.

Não há mais pandemônio nem necessidade de cobrir boca e nariz. Vencemos as mamonas assassinas invisíveis. Nós, não: a ciência. Depois de mais de dois anos confinado, saindo apenas para o essencial e olhe lá enquanto a maioria aglomerava sem culpa nem consciência, atingimos a tão aguardada imunidade coletiva.

Como os livros não estão saindo tão bem, vendi meu carro para pagar as passagens e a hospedagem num hotel cujo quarto é branco e clean, do jeito que eu curto. Tão limpo que parece à prova de barata voadora, coisa que nem Plutão é.

Há areia entre meus dedos. Grãos grossos como farinha de aveia. Não me incomoda, porém. Não hoje! Os séculos de confinamento me ajudaram a superar minhas bestas aflições. Afiaram-me os sentidos, transformaram as miúdas possibilidades da pré-pandemia em desejos atômicos, aguçaram minha tara pelos simples toques e experiências.

Estou apenas de bermuda rosa. Salpicada de flores e curta como a dos italianos que falam alto e gesticulam ao meu redor. Abraçado pelo sol que raiou cedo e invadiu meu quarto para me arrastar até aqui, à frente deste pequeno estabelecimento de madeira à beira-mar de onde não param de sair e entrar garçons de camisa e sorrisos abertos.

Peço um vinho branco ao garçom. Bianco, digo. Qualquer um, pois, apesar dos dias de cárcere forçado sem álcool nem açúcar, hoje o intuito não é degustar nem reconhecer notas de sei lá o quê: resolvi me embriagar mesmo, dormir na areia, acordar com a lua me avisando que é hora do banho pré-espaguetti. Pré-negroni.

O narigudo bonitão vem com um pinot grigio e duas taças: a mulher que enfrentou os “séculos” mascarados também está comigo. Respirando aliviada dentro do biquíni de peixes e orquídeas que comprei para ela quando morávamos em Florianópolis. Quando achávamos que nossos maiores problemas eram a instabilidade da internet e o mofo implacável da ilha.

“Não é que passou”, ela afirma.

Respondo com um “ufa” seguido de um suspiro. Compro cigarros também. Quase 20 euros o maço e não me parece caro. Nem errado, apesar de eu não fumar faz anos. A ocasião pede, afinal. É isso! É dia de me libertar, de redenção, de trocar uns dias a mais no futuro pelo prazer momentâneo. Dou um gole e uns tragos ouvindo o Jimmy Cliff que sai das caixas de som do restaurante. The harder day come.

Fecho os olhos, mas logo os reabro para as lágrimas caírem mais fácil. Gotas cadentes de alívio contornando meu sorriso, atravessando meu bigode, salgando o paladar. Pingos-detox me salvando da peçonha que os últimos meses infinitos inocularam em mim, em meus planos, num futuro que mantive congelado enquanto tudo ruía e asfixiava e era intubado sem certeza de retorno.

“Tá tudo bem?”, ela me pergunta ao notar os rios descendo bochechas abaixo.

“Melhor impossível.” Pensando que um beque também cairia bem. O superego ruindo enquanto a vida — inclusive a esperança — reergue-se tocada pela brisa úmida, lambida pelos raios ultravioletas que, além de me ajudarem na produção de vitamina D, parecem eficientes como Rivotril.

Pedimos queijos e azeitona. Mais vino, per favore. Grazie. Prego. Marlboro vermelho dessa vez. “Light de cu é rola!” e gargalhadas adolescentes. Gargalhadas sobreviventes.

De olhos fechados e cigarro colado aos lábios como uma espécie de Slash marinha, boio no mar-piscina. Flutuo pensando em tatuar um pé de manjericão no peito, em alugar uma casinha por aqui e passar o resto da vida só de bermuda à base de pescados e prazeres carnais. Um veleiro? Por que não? Se até o Max Fercondini fez… Rio sozinho dessa vontade de viver, num só dia, tudo que mantive represado; rio desse desejo de tragar todos os tesões da vida de uma vez; pensando em dar um pulinho na Grécia se a ressaca não estiver tão forte amanhã. Depois — por que não? — sangria em Madri. Scotch de frente ao castelo de Edimburgo. Por que não?

“É pra isso que serve a vida, não é?”, penso alto e ela confirma mesmo sem saber a profundidade dos meus pensamentos.

É tão bom estar vivo. Apenas isso. Tão bom simplesmente me deixar levar pela dança deste oceano sem tubarões nem águas-vivas assassinas capazes de causar queimaduras e choques anafiláticos. Tão bom tragar a nicotina junto com a certeza de que hoje, ao menos, tudo acabará num merecido porre. Os podres do passado no vaso e descarga neles. Tchau que não é oi, que é só tchau mesmo. Sem culpa nem arrependimento por me entregar à morfina lícita, à uva fermentada, à urgência displicente que só emerge de nós quando o bafo fétido da morte, por qualquer merdinha do acaso ou pangolim comido na China, faz-se presente o bastante para querermos engolir a vida ainda quente, pulsando, fervendo, com osso, coração e — por que não?! ­— glândulas de veneno que, na dose certa, serve como remédio.

Pingando, com uma bituca na boca, peço uma grappa. Peço-a em casamento também. A mulher, não a grappa. As duas, aliás… Elas aceitam e um beijo triplo, etílico e salgado nasce para nos dar a certeza de que, nesta vida, pouca coisa tem tanto valor quanto esses pequenos momentos de embriaguez sincera. Esses momentos de gratidão sem hashtag, sem wi-fi nem confetes virtuais que vêm tornando o mundo um infinito mural de retratos plásticos e vaidosos.

“Quer casar comigo?”, repito.

“Já somos casados… Esqueceu?”

“Foda-se!”

Então ela se aproxima, abocanha-me o beiço e se apoia sobre minha coxa, quase perto da virilha, provocando o nascimento de uma lombada em minha bermuda; o pau ao qual ela se agarrará firme e feliz por causa da existência que passou a dar mais pé; a dureza da qual ela se servirá – banqueteará! – em comemoração ao amolecimento da vida. Ao menos por hoje, neste tarde azul na qual estamos cada vez mais bichos.

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Ricardo Coiro

Ricardo Coiro

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