Preciso renovar minhas cicatrizes

Tantas são as perguntas que já me tiraram o sono. Tantas! Hoje, porém, de diversas formas e ângulos, buscando pistas nas páginas de um passado já virado, questiono quase que somente a mesma coisa: o paradeiro do menino corajoso que um dia fui.

Na terapia online, enquanto desengorduro as louças, lendo a bula de remédio em busca de efeitos colaterais cruéis, desistindo de retornar ao jiu-jitsu para evitar lesão que exige cirurgia com anestesia geral, verificando a previsão antes de pegar estrada… Pergunto-me:

Aonde foi o Coiro que não paralisava diante de tudo e qualquer troço com potencial de atirar-nos direto aos braços da nossa única certeza, o derradeiro ponto final?

Quantas e quantas coisas já deixei de viver por medo de morrer?, pergunto-me. Um paradoxo que me corrói por dentro. Sentindo-me um verdadeiro faixa preta na covardia, debruçado sobre as janelinhas de vidro fosco e trincado que dão ao meu interior para ver se, em algum canto, entre as tripas remexidas e o coração partido e repartido, ainda há resquícios do adolescente que não fugia de brigas, pulava degraus num skate, tragava fundo o Marlboro Vermelho e, no meio da madrugada, do nada, sob a chuva caía na estrada rumava de janelas abertas e cabelos esvoaçantes ao que, hoje, infelizmente, parece-me nebuloso demais para ser visitado sem estratégia quase militar, kit de primeiros socorros, 190 no botão de discagem rápida do smartphone.

Às vezes, após algumas braçadas em meu mar de sentimentos revoltos, concluo que é tudo culpa do amor. Afinal, depois de remover minha armadura de cafajeste impenetrável e permitir que ela invadisse minha casa, comecei a fazer planos – levá-la para se sentir miúda aos pés da Aurora Boreal, comer pizza em Nápoles, rir do desconhecido em Tóquio -, e planos, bem… Planos não podem ser deixados pela metade. Muito menos as promessas, mesmo quando feitas após algumas taças de vinho tinto.

Ela ficará magoada demais, acredito. Eis a razão! Passará o resto da vida perseguida e assombrada pelas nossas eternas incompletudes, por tudo que parecia tão simples se não fosse… Para não magoar o novo namorado – o cara que depois de muita insistência conseguirá convencê-la a voltar a ser primavera-, depois de um documentário sobre as luzes verdes quase alienígenas da Islândia, entrará no banho para que seu pranto se misture ao do chuveiro, e olhando aos fios saindo ducha, mesmo sem querer, vai se lembrar do medo que eu tinha (tenho!) de bater as botas trocando a resistência. Rindo de canto de boca, soluçará ao rememorar a manhã de Natal em que pedi ao motorista do Uber para trocar meu chuveiro.

Entende meu ponto?

Percebe que o amor – e os tantos planos que dele derivam – nos deixa mais apegados ao frágil fio da existência?

“Quando não se tem nada, não há nada a perder”, o Dylan canta na música Like a Rolling Stone, e, justamente por isso, pelo tanto que fervilha e reluz aqui dentro, por causa dos poemas que ainda nem plantei e dos vôos que ainda não peguei, pelos vestidos que ainda nem dei que certamente a farão suspirar sem entender como sei o tamanho exato dela… Por tudo isso e mais um montão de belezuras ainda em forma de rasura, por essa coleção de girassóis que hoje só são sementinhas plantadas em diálogos em madrugadas insones, que me pego travado, não querendo colocar tudo a perder.

Mas, por outro lado, quando o sol e o céu azul parecem ressuscitar minha bravura cada dia mais preguiçosa, fica mais fácil perceber que viver é perder, como fiz questão de afirmar em outro texto. Não percebeu ainda? Sendo assim, ao deixar de viver por medo de perder, torno-me, automaticamente um morto-vivo; o que me faz concluir que o medo da morte só faz algum sentido quando não nos impede de extrair da vida o que dela há de melhor, o pouco que de fato importa, as raras estrelas verdadeiras que insistimos em não enxergar enquanto reclamamos das nuvens feitas das complicações que nos mesmos criamos – este texto talvez seja uma delas, admito.

E vou além: ao me tornar um medroso que trava diante de tudo que a vida exige para ser o mínimo de vida, também corro risco de perder o amor. Afinal, como podem a admiração e o tesão resistirem à imagem-cristal de alguém que vive a optar pela morte antes mesmo do tiro, da batida, do contágio, da artéria explodindo?

Viver é perder, repito. Para mim, em voz alta, para não me esquecer de que perco muito mais ao tentar me tornar imune a tudo que corta, asfixia, envenena, vira câncer e sei lá mais que caralho. Repito, apesar de saber bem quem me tornei e o quanto já lutei contra esse frágil eu, com a esperança de que, no próximo texto, eu tenha mais cortes recentes, mais costelas trincadas, o pulmão mais preto e o fígado mais surrado. Preciso renovar as cicatrizes, colocar mais carne viva na poesia.

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Ricardo Coiro

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