11h20.
Quando foi dormir, estava jururu, de maquiagem borrada e com um olhar arredio que teimava em fugir do meu, que tentava emanar algum consolo, um “vai dar tudo certo”. Por que ela estava assim? Porque a vida, às vezes, prega peças bem piores do que aquelas pegadinhas sem noção feitas pelo Silvio Santos. Mas não vamos falar sobre isso, OK? O terremoto já passou, e nada podemos fazer para mudar os parágrafos anteriores deste lance chamado vida. Agora, meu caro, o que me resta é bolar — e realizar — algo capaz de fazê-la acordar sorrindo, radiante como fica quando desliga o despertador na primeira manhã de férias. Ela ainda está roncando feito uma Harley-Davidson, o que me leva a crer que não acordará tão cedo.
Tem alguma sugestão?
Nada?
Nenhuma mesmo?
Passeio de helicóptero? Cê tá louco, irmão? Eu sou apenas um escritor latino-americano, tá lembrado? Em meu RG, além de Coiro (que não é japonês, acredite se quiser), tenho Silva; nada de Chateaubriand, Mansur ou Diniz. Com o salário que ganho, meu velho, mal dá para sustentar os meus gatos pulguentos. Sem contar que helicópteros vivem a se esborrachar. Basta sintonizar no Jornal Nacional para ouvir um “helicóptero cai e mata dois em…”. Nem fodendo, cara! Nem fodendo mesmo! Preciso de algo mais seguro e barato, saca? Mas o quê?
Já sei! Vou fazer um rango que ela ama. Mas só isso? Falta a cereja do bolo, tá ligado? Falta o tchan da coisa, o ó do borogodó. Mas o quê?
Tive uma ideia: comprarei um cacto daqueles pequeninos para ela. Por que não rosas, violetas ou orquídeas? Porque ela faz coleção de cactos, ué. E vive a me dizer que eles são mais fáceis de manter e blá-blá-blá. Fechado: farei um rango firmeza e comprarei um cactinho pomposo. Curtiu?
Para não acordá-la, me visto bem devagar e sem fazer alarde. Enfio um pedaço de queijo azedo (a única coisa quase comestível que tem na geladeira dela) na boca, escovo os dentes e… Tô pronto! Giro a chave com cuidado, vou de elevador até o térreo e parto em direção ao supermercado mais próximo.
Enquanto caminhava até aqui (lugar de gente feliz), decidi a comida que farei: lasanha. Por que lasanha? Porque é fácil, é a refeição perfeita para um dia friozinho como hoje e tem aquele quê de comida de vó, manja? E quem diz que não curte comida de vó tá mentindo ou não bate bem das ideias, na boa.
No carrinho: massa pronta, creme de leite, molho vermelho, queijo pra caralho, cebola, alho, manteiga, farinha de trigo, mais um montão de queijo, manjericão e sobras do último Natal (uma Coca-Cola de três litros e um panetone trufado). É isso, né? Ou tá faltando algo? Presunto? Não, nada de presunto. Ela não come carne bovina nem suína. Agora só falta achar o “cactin”…
— Moça, cê sabe se vende cacto por aqui? — pergunto a uma caixa.
— Se tiver, tá ali, ó! — ela me responde, apontando as unhas imensas em direção a uma orquídea.
Tem cacto, só um, mas ele bate em minha cintura e tem espinhos capazes de perfurar um urso pardo. Que merda! Acho que vou ter que deixar esse lance de cacto para lá, fazer o quê? Bye Bye, supermercado.
O céu tá ficando preto. Aliás, já pretejou. Com sorte, virá chuva por aí. Por que “com sorte”? Porque, do jeito que o céu tá, me parece estopim de furacão. Melhor apertar o passo, começar uma marcha atlética.
Hoje é dia de feira! E feira, geralmente, tem cactinho. Já vi uma vez por lá. Ou será que foi sonho? Mas vai cair o mundo logo menos. E a feira exigirá uma rota mais longa. E a Coca-Cola tamanho família-que-não-conhece-métodos-anticoncepcionais tá começando a pesar. Ah, mas o cacto é importante, né? Como disse antes: é o tchan da coisa, o ó do borogodó.
Respiro fundo, troco a sacola da Coca de mão e sigo em direção à feira. Eu tenho um objetivo, me lembro.
O relógio de rua marca 12h46, mas parece que já é noite na Aclimação. Como já disse neste relato: o mundo está prestes a desabar.
— Vai jabuticaba aí, meu rei? — o vendedor de pele enrugada e voz de Anderson Silva me pergunta. E como sei que ela ama jabuticaba — sendo capaz, inclusive, de comer vinte por minuto —, encho um saquinho. Meio quilo de bolas arroxeadas.
Cadê a barraca de cactos? Será que vi em outra feira?
— O morango tá docinho como beijo de moça apaixonada. É mel do papai do céu, mermão, tu não vai se arrepender! — um moleque com sotaque carioca me diz, estendendo uma bandeja cheia de morangões em minha direção.
— Valeu, irmão — respondo.
Mas ele insiste:
— Tem certeza, patrão? Experimenta um pra tu me falar se não é o melhor morango do planeta. Faço duas bandejas por dez.
Experimento e… Caralho, que morango bom! Levo uma bandeja, por seis reais.
O braço tá doendo. Se eu não tivesse abandonado a musculação, as coisas poderiam estar mais fáceis agora, eu sei. Mas a realidade é uma só: sou sedentário e a Coca parece pesar mais do que a TV de tubo que carreguei, na semana passada, para a vizinha que vive a deixar o meu andar com cheiro de bolo e feijão de mãe.
Cadê a porra da barraca do cacto?
Ih, um pingo. Será saliva de vendedor? Será espirro de alguma dessas velhas que estão puxando carrinhos? Aliás, um carrinho desses salvaria a minha vida. Mas roubar de uma senhorinha indefesa me tornaria um monstro, certo? E comprar… Bom, comprar não me parece possível: só tenho quatro contos na carteira e na feira ninguém aceita cartão. Como pode, né? Estamos em 2015 e ainda tem gente que não aceita cartão. Mais um pingo, direto na napa. Uma cuspida de gigante. Preferia que fosse mijo de pomba, sinceramente. Mas é princípio de chuva, com certeza.
Barraca de cactos à vista, finalmente! Corro feito o Usain Bolt. Não exatamente, na real. Ou você já o viu correr de Havaianas nos pés e cheio de sacolas plásticas nas mãos?
— Moça, quanto é o cacto? — pergunto à vendedora.
— Dois por dez reais, moço.
Tudo por aqui parece ser “dois por dez”.
— E com desconto? — pergunto.
— Posso fazer um por cinco.
Penso em dar mais corda à negociação, em jogar o joguinho local, porque é assim que as coisas rolam por aqui. Mas não tenho muito tempo, o intervalo entre as cuspidas de Godzilla está diminuindo. Então apelo:
— Preciso de um cacto por quatro reais. Sabe o que é? Minha mãe está com câncer, morrendo. E acho que este cacto faria um bem danado a ela, sabe? Mas, se não puder, eu entendo, juro que…
É seu — ela me interrompe. E o coloca numa caixinha, com todo o cuidado do mundo. Deve ser mãe. Mãe que nunca ganhou um cacto. Enfim.
Reajusto as sacolas nas mãos, conto até três e disparo…
Uma quadra, duas quadras, três… O chinelo estoura. Merda! Coloco o chinelo na sacola da Coca — aquela que agora pesa mais do que uma Kombi cheia de palhaços pós-feijoada — e retomo a corrida. Torço para não pisar em cacos de vidro, leptospirose e peças de lego.
O céu desaba. Relâmpagos fazem meu cu apertar. Lembro-me de ter ouvido alguém afirmar que o Brasil é o país no qual mais gente morre por causa de raio. Corro ainda mais. A sacola da Coca se rompe. Lógico que isso aconteceria. Passo todas as sacolas para a mão esquerda e, com a direita, agarro a Coca tamanho míssil russo como agarraria um bebê. Corro. A chuva aumenta. Só falta começar a chover sapos, como no filme Magnólia. Já posso ver o prédio dela. E raios, para tudo quanto é lado. Sou ateu, mas, em voz alta, lanço: “Se você existir, seu Deus, não me mata, por favor”. Nenhuma resposta. Nada. Mas chego bem. De cavanhaque pingando e ofegante, mas bem.
Entro no prédio e, imediatamente, vejo se entrou água nas sacolas. Não, não entrou. Confiro também a situação dos meus dedos: estão roxos e inchados, mas não precisarei amputá-los. Como sei? Assisto àqueles programas que mostram o dia a dia em prontos-socorros. Chamo o elevador. Chamo mais uma vez. E nada do filho da puta aparecer. O botão nem sequer acende. Não acende porque acabou a luz, é óbvio. Tinha que acabar a luz bem agora? Ela mora no décimo quinto. Décimo quinto, você ouviu? E sabe o mais irônico? Eu que a convenci a escolher um andar mais alto, para fugir dos pernilongos, que preferem passar dengue/zika/malária aos moradores dos andares mais próximos ao térreo. Merda! No momento, preferia que doze pernilongos estivessem sugando a minha bola esquerda. Mas não há como fazer a troca. Agora, só me resta uma única opção: escada.
Troco as sacolas de mão mais uma vez, “reabraço” a Coca-Cola — que agora pesa como um tiranossauro depois de um rodízio de pterodáctilos à passarinho — e começo a operação subida. Primeiro, segundo, terceiro, quarto… Já subi degraus à beça e, caralho, ainda estou no sétimo andar. E parece que tem um Carlinhos Brown aqui dentro. Será que vou enfartar? Meu pai já fez ponte de safena, minha avó bateu as botas assim, meu colesterol tá nas alturas, sou ex-fumante, comi três coxinhas com bastante maionese ontem e não tô sentindo meu braço. Merda! Será que vou morrer bem agora, no sétimo andar, em frente à casa de um vizinho que nunca me deu um bom-dia? Respiro fundo e concluo: não sinto o braço por causa do peso. Respiro fundo e penso no Keith Richards, em tudo o que ele já fez e não o matou. Respiro fundo e tento me lembrar de alguém que morreu na Aclimação, descalço, encharcado, portando um cacto e matéria-prima para lasanha e em frente ao sétimo andar. Não me recordo de ninguém. E nunca fui o primeiro em nada, essa que é a verdade. Na chamada, por exemplo, costumava ser o vigésimo quarto, o que me tornava alvo fácil para bullying de moleque bobo. Enfim. Nunca fui o primeiro em nada e, por isso, acho que não serei o primeiro a morrer nestas condições. Retomo a escalada…
Oitavo, nono, décimo, décimo primeiro, décimo segundo, décimo terceiro, décimo quarto… Já ouço o ronco dela daqui, dá para acreditar? É difícil, eu sei. Mas é real, juro; é ronco que merece ser estudado, que vem da alma. Décimo quinto, finalmente. Ufa.
Sem fazer muito barulho, jogo as Havaianas no lixo, guardo as compras e, com muito cuidado, coloco o cacto ao lado de sua nova família. Coloco e sussurro:
— Você me deu um baita trabalho, seu espinhudo do cacete. Acho bom agradar a patroa! Tá me entendendo?
Já no banho, prestes a dar aquela “xampuzada” caprichada no coco, a vejo entrando no banheiro com cara de zumbi. Entra e sai, sem falar comigo. Ia mijar e desistiu devido à minha presença, suspeito. Parece que ainda está dormindo, “sonambulando”. Parece que ainda está triste. Pergunto-me: será que minha surpresa fará o efeito esperado? E a resposta imediatamente surge, em formato de berro:
— Um cacto! Que lindo!
Então ela reaparece e diz:
— Ele vai se chamar Heisenberg, o que você acha?
— Perfeito — respondo. E já aproveito o embalo:
— Será que ele curte lasanha?
— Lasanha? — ela me pergunta de olhos arregalados.
— É, lasanha! — afirmo. — Hoje teremos lasanha. E Coca-Cola. E panetone. E jabuticaba. E moran…
— Jabuticaba? Não acredito! Eu amo jabuticaba.
— Eu sei. Por isso que eu trouxe, ué.
Ela me mostra os dentes, quase todos. Os caninos não estão mais afiados. E mesmo com xampu dentro dos zóios, eu os mantenho abertos. É o meu sorriso preferido, aquele que me dá um grau. É o sorriso pelo qual eu carregaria, por mais muitos andares, aquela Coca vadia — que agora já deve ter voltado a pesar uns três quilos.
— Você foi a pé? — ela me pergunta. Porque sabe que meu carro tá na oficina.
— Fui — respondo.
— Não deu muito trabalho?
Minto:
— Não, eu estava precisando dar uma caminhada para alinhar as ideias.
O que eu estava querendo, de verdade, era algo capaz de fazê-la sorrir. Não é mesmo? E consegui, não consegui? Agora tenho tudo o que preciso para que este sábado se torne um sábado inesquecível. Só não voltei a ter luz. Mas quem precisa de luz quando tem morangões, jabuticabas, panetone, Coca-Cola, ingredientes para lasanha e amor suficiente para virar conto de livro e trepada no escuro?