No meio do meu caminho tinha umas pedras

O diabo, quando descobriu que não havia sido chamado a uma festa organizada por bruxas, transformou todos os convidados em pedras.

Essa é a lenda que inventaram para explicar as tantas pedras metidas no mar sem ondas que agora contemplo, na Praia de Itaguaçu, localizada na parte continental de Florianópolis.

Não creio em nada metafísico, portanto, não boto fé nesse causo que fica exposto numa plaquinha enferrujada a todos que passam por aqui.

placa colada a uma das pedras da Praia de Itaguaçu

Em dias como hoje, por exemplo, nos quais expectativas são decepadas pela lâmina da realidade – escolheram outro candidato para participar de um projeto interessante -, eu caminho cerca de três quilômetros até aqui.

Ando bem devagar, devagarinho, à la Martinho da Vila; margeando o oceano com medo de perder meus cabelos finos e cada dia mais ralos para a ventania que em São Paulo não havia – ou rolava e era barrada pela muralha de arranha-céus antes de me acertar?

Locomovo-me numa calçada estreita de pescoço virado à esquerda, ao manto inquieto que muda de cor todo dia, imaginando a efervescência subaquática que acontece por lá independente das minhas frustrações humanas; peixes, camarões (pescadores trajando roupas de borracha vivem se amontoando em busca deles por essas bandas), polvos, arraias, crustáceos e répteis perdidos se esbarrando – e às vezes, até, saindo na porrada – como fazem os pedestres apressados da Paulista.

calçada que leva às pedras da praia de Itaguaçu

Dou meus passos invejando as firulas aéreas das gaivotas e dos tantos pássaros e aves que, diferente de mim, não precisam se preocupar com o aluguel do próximo mês nem procurar formas de transformar paixão em ganha-pão.

“Os bichos não entendem um capítulo de Mindhunter, contudo! Nunca saberão o alívio que o poema Bem lá no fundo, do Leminski, dá! Raramente têm a chance de experimentar Nutella e coxinha com Catupiry…”, falo alto, em busca de conformidade, cuspindo prós com o intuito de reequilibrar a balança da condição humana, aceitar os riscos da racionalidade.

E funciona. Pois quando chego aqui…

banco em frente às pedras da Praia de Itaguaçu

Neste banco de madeira marrom onde casais fazem selfies e se pegam de jeito, gaúchos tomam chimarrão e adolescentes de dedo amarelo curtem a brisa, já estou conformado. E se ainda não digeri totalmente a decepção, recorro à lenda das bruxas para enxergar a metade cheia do copo da vida.

Agora, por exemplo, apego-me à seguinte conclusão:

“Sou apenas mais um latino-americano que perdeu uma oportunidade de emprego num país tropical arruinado pela ganância. Um brasileiro que, como muitos outros, aprendeu a transformar o sangue dos nocautes levados em combustível para enfrentar as pancadarias inevitáveis da vida. Insuportável, de verdade, é ser transformado em pedra do nada, no meio de uma festa.”

Daí, sou capaz de fazer minha própria mágica: num território que é só meu e inviolável, onde tuuuuuuudo pode acontecer, transformo as pedronas acinzentadas em pedras de gelo, jogo-as num copo de Negroni gigante e bebo tudo, de golinho em golinho, apreciando a mistura amarga, doce e cítrica que, se pensar bem, parece muito com a vida.

Ah, sem contar que, vez ou outra, também faço amigos por aqui. Gente como eu, que também recorre à magia das pedras da Praia de Itaguaçu.

amigos feitos nas pedras de itaguaçu

Da esquerda à direita: eu, um simpático trabalhador que me contou onde encontrar cerveja de garrafa a R$ 7,00 e um médico-ciclista que, depois de nos oferecer um gole de uísque do bom, pedalou em busca dos encantos de Floripa.

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Ricardo Coiro

Ricardo Coiro

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