Nosso amor não enferruja

Ela coloca sete gotas de adoçante no fundo de um copo americano, despeja café até quase a boca, mexe com uma colherinha enferrujada e diz: “Toma, meu bem, para ter forças”. Deve ser a bilionésima vez que ela faz isso, da mesmíssima maneira, olhando-me com cara de bicho zeloso, como se eu fosse parte de uma prole pela qual ela é responsável.

Estamos casados há algumas Bodas e Copas do Mundo, e consigo contar nos dedos as vezes em que ela não preparou meu café pontualmente e com capricho; a primeira vez rolou em 1986, alguns dias após o nascimento do nosso primeiro filho. Acordei, fiz a barba, banhei-me, vesti minha gravata-forca de cada dia e, quando cheguei à cozinha, ela estava dando um dos peitos ao Rafael, que sugava com força, fazendo barulho de canudinho no fim do milk-shake, certo de que dependia daquele colostro para continuar vivo. “Eu já faço o seu café, tá?”, ela me disse, com certa culpa pregada no olhar, entre as rugas primogênitas que, àquela altura, já haviam começado a surgir. Mas eu não pude esperar, estava atrasado para uma reunião que, naquele momento de juventude e vontade de vencer na vida (se é que isso existe, né?), pareceu-me essencial, mas que, agora, eu sei: era tão importante quanto horóscopo de jornal do bairro; a segunda vez que ela não me fez café aconteceu há cerca de sete meses, no dia em que completei setenta e dois. Eu cheguei à cozinha como sempre – batendo o salto do sapato no chão frio e cantarolando para não pegá-la desprevenida, com o dedo no nariz. A luz, porém, estava apagada, e não havia cheiro de torrada, e não havia fumaça de Charm no ar, e não havia… Senti uma espécie de buraco negro brotando em mim. “Ué, ela nunca sai antes de mim”, pensei alto. E comecei a procurar por bilhetes ou memórias capazes de me dizer aonde ela havia ido. Nada. Não me lembrei de consultas ou chegadas de parentes do interior. Nada.

Então meu telefone tocou: “Meu bem, se você puder, espere-me um pouco. Estou na padaria comprando canela! Resolvi fazer o bolinho que o cê ama. Hoje você está se tornando um pouco menos novo, né?”.

Tinha uma reunião, como sempre, mas as dores no peito que não conto a ninguém e os estalos cada vez mais frequentes nos joelhos me fizeram crer que eu tinha o direito irrefutável de atrasar ou, até, de nem aparecer. Esperei por Maria. E ela, em vez de passar o café de cada dia, assim que chegou, abriu o forno, tirou um bolo de mandioca com laranja, jogou canela sobre ele e, junto com o pedação que colocou num prato lascado, deu-me um beijo molhado. Não de língua. Nem de adolescente que, às vezes, trinca o dente de euforia e tesão. Mas molhado. Beijo que continha notas de carinho verdadeiro, desses que sobrevivem até mesmo ao corrosivo ácido do tempo.

Neste mesmo dia, uma hora depois – e enquanto tomava café na padaria da esquina -, tive a certeza de que morrerei rapidamente se ela partir antes de mim, como já vi acontecer com outros casais. E a causa da minha morte não será falta de café, não. Aliás, cá entre nós, o café da Maria não é nenhum Nespresso. Contudo, vem com um conforto que pouca gente entenderá. O conforto de saber que, neste amontoado de merda, e vermes, e canalhas, e egoístas, e... Encontrei alguém que realmente se preocupa comigo, e que não deixa, por nada, o nosso amor enferrujar.

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Ricardo Coiro

Ricardo Coiro

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